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Das amarras dela - um relato

Atualizado: 3 de dez. de 2020

Tainá Borges¹

Participação: Lara Rocho²


De onde venho

Sou graduada em Psicologia pela UNISINOS, pós graduada na especialização de Dança da PUCRS, cursei a graduação em Licenciatura em Dança da UFRGS, e atualmente curso a graduação de Educação Física na FADERGS. Pesquiso as artes do circo desde 2001. Na minha trajetória artística atuo em muitas frentes, como malabarista, acrobata aérea, palhaça, bailarina, diretora, professora, produtora e gestora.


Sou integrante fundadora do grupo Circo Híbrido³, fundado em 2004, que trabalha com espetáculos, intervenções artísticas, eventos, cursos e oficinas. Tem sua sede desde 2007, com espaço cênico com eventos e espetáculos, e uma escola com aulas permanentes e cursos convidados. Entre nossos principais trabalhos, destacam-se: “Cabaré Valentin - Teatro Bar Espetáculo”, “Etc…”, “O Magnífico Circo Praça”, “Das amarras dela” e “Sopráveis”. O grupo já foi indicado para prêmios, participou de diversos festivais e eventos, nacionais e internacionais, e conquistou diversos editais públicos.


No Circo Híbrido sou gestora, administradora e produtora, bem como atuo como artista, coreógrafa e diretora em todos os trabalhos do grupo, do Núcleo Artístico e do Núcleo de Pesquisa em Dança Aérea (NUDA), bem como da nossa Escola Circo Híbrido, onde também sou coordenadora e professora. Na minha trajetória como bailarina, participei do Grupo Experimental de Dança da Prefeitura de Porto Alegre, onde dancei em dois espetáculos, o infantil “Faz de conta que…”, e o adulto “`Pulp dance”.



Como pensamos os processos criativos no circo

Os processos criativos contidos em uma dramaturgia de um trabalho circenses e/ou de dança, podem ter vários caminhos - estimulados pela trilha sonora, por qualidades de movimento, por escolha de movimentos e truques, partindo de um conceito ou um tema, entre outras possibilidades. Em nossas produções já utilizamos muitas destas ferramentas. Mas a busca mais importante é de levar para a cena algo genuíno, que nos faz sentido, para além do virtuosismo técnico e da beleza. Algo muito caro para nosso grupo é ter em cena a singularidade de cada artista criador, transbordando de presença a dramaturgia ali presente, diluindo assim as relações de palco e plateia.



Pensando em questões de produção, criar um trabalho artístico envolve muitas mãos. Atualmente em nosso grupo, o Circo Híbrido, as criações, tanto do repertório do núcleo artístico profissional do grupo, bem como de sua escola, contam com uma grande equipe de trabalho: artistas, técnicos, figurinista, designer, registro de imagens, equipe de produção e direção. Nem sempre foi assim. Nossos processos inicialmente eram criados, dirigidos, encenados e produzidos por mim, Tainá Borges, e pelo Luís Cocolichio, membros fundadores do grupo, sem nenhum incentivo financeiro externo. Realizamos muitas criações neste formato. Conquistar editais públicos para montagem de espetáculos, circulações e renovações de trabalhos, foi um caminho para qualificar e instrumentalizar nossos trabalhos, bem como para criar essa rede de profissionais que atua com nosso grupo. Para além de projetos contemplados via edital público, nosso grupo sempre seguiu criando novas produções artísticas independentes. O “Das amarras dela” foi assim, uma produção independente, sem nenhuma fonte de financiamento.



O que é o NUDA

Afim de aprofundar nossas pesquisas em dança aérea, em 2016 o Circo Híbrido criou o Núcleo de Pesquisa em Dança Aérea (NUDA), com direção geral minha e da Lara Rocho. Quando idealizado havia claro o desejo de que a participação dos seus integrantes se desse por meio de seleção de projetos ou cartas de intenção, e que essa participação não constituísse um elenco permanente, e sim, rotativo. No entanto, nos demos conta neste primeiro momento que todas essas propostas precisam ser elaboradas com tempo e sobretudo em meio a experiência, pois nunca havíamos pensado processos seletivos no Circo Híbrido.


Nesse contexto, a primeira formação do NUDA se deu por meio de um convite por parte da direção, voltado para um grupo de alunas regularmente matriculadas na Escola Circo Híbrido, com frequência mínima de 1 vez por semana, que ou já estavam na escola em uma relação de longa data, ou demonstraram-se interessados em aprofundar pesquisas no campo da dança aérea e processos criativos. Constituímos um elenco com 11 integrantes, sendo 9 alunas convidadas mais Lara Rocho e eu, que além de atuar na concepção e direção, integrávamos também o elenco. Importante salientar que este grupo de pessoas aceitou participar desta experiência cientes que não haveria remuneração, pois o projeto não contava com nenhum tipo de financiamento ou patrocínio. Enquanto contrapartida, o Circo Híbrido ofereceu a todos os participantes do NUDA, uma aula semanal gratuita na nossa escola.


Organizamos as atividades do Núcleo em um único encontro semanal, com duração de um turno, no qual trabalhávamos os seguintes conteúdos: preparação física e cuidados gerais voltados ao corpo que dança, estudos técnicos de dança aérea, processos criativos e seminários teóricos em torno de temas diversos que atravessavam nossa prática, ligados aos processos criativos. No segundo semestre de 2016, com algumas cenas em processo de criação, tomamos uma decisão prática: inserir essas cenas no roteiro do espetáculo de final de ano da Escola Circo Híbrido. Esta decisão foi tomada com o intuito de estabelecer um prazo para a finalização das pesquisas criativas, bem como incentivar o grupo a apresentar tais processos.


Assim, o NUDA estreou no espetáculo da Escola intitulado “Cadê Amélia? #belxspenduradxsedoar”, em dezembro de 2016, em uma temporada realizada via seleção em edital de ocupação dos teatros municipais, de 4 sessões lotadas no Teatro Renascença.

As atividades do NUDA seguem ativas⁴ desde então, com um elenco rotativo, selecionado a partir de projetos pela equipe de direção. Em seu repertório, o NUDA tem o espetáculo “Das amarras dela”, e o projeto de intervenção performance “Atravessamentos”, além de participações nos espetáculos da Escola Circo Híbrido “Cadê Amélia? #belxspenduradxsedoar”, “.NÓS.”, “O que pode o corpo?” e “Autoestima delirante”.



De onde vem “Das amarras dela”

“Das amarras dela” vem na esteira de reflexão em torno do tema do feminino. Por sermos um grupo e uma escola formado em sua maioria por mulheres, o feminino é um tema que nos atravessa diretamente. Em 2016 o espetáculo de final de ano da Escola Circo Híbrido foi sobre o universo feminino, dando início às pesquisas sobre o tema. Em 2017, diante da ideia de criar um espetáculo do NUDA, avaliamos que seria interessante a oportunidade de aprofundar questões latentes acerca do feminino que não conseguimos abordar dentro do espetáculo da escola.


A concepção e a direção deste espetáculo foi feita por mim e por Lara Rocho. O elenco inicialmente tinha 11 artistas, mas ao longo do processo teve alterações, ficando na primeira temporada 12 artistas em cena, e na segunda e terceira temporadas 9 artistas em cena. Na equipe, Luís cocolichio como cenógrafo e responsável técnico de montagem e segurança; Mirco Zanini na iluminação; Vado Vergara na operação de som; Clarissa Marchetti como figurinista; Mônica Kern como Designer Gráfico, e Sal Fotografia nos registros de imagens, além de sempre ter uma equipe de apoio que acompanha a produção de palco. Importante ressaltar que essa equipe topou fazer parte desse projeto mesmo sabendo que não haveria cachê garantido, pois seria um trabalho independente, somente com a verba que entraria pela bilheteria.



Notas sobre o processo criativo

Durante os exercícios criativos do espetáculo da escola “Cadê Amélia? #belxaspenduradxsedoar”, surgiram uma série de questões latentes, dentre estas, destacamos a problemática em relação ao corpo feminino, que se mostrou fortemente presente. Durante os encontros do NUDA, e na avaliação dos processos de criação deste trabalho da escola, nos deparamos em meio às nossas reflexões com a constatação de lidarmos diariamente com uma série de amarras socialmente construídas e impostas ao corpo feminino. Neste contexto, decidimos que iríamos mergulhar nessa temática em nosso projeto de espetáculo. Desde o princípio sabíamos que seria um tema sensível, que desacomodaria afetos, experiências de vida e a maneira como lidamos com o nosso fazer artístico. Ainda assim, não tivemos dúvidas que seria, e ainda é extremamente importante e necessário produzir um espetáculo artístico de dança aérea e circo sobre esse tema.


Para tratar das amarras do corpo feminino, escolhemos a história da dança enquanto ferramenta para o processo de criação para nosso espetáculo. Enquanto direção, planejamos um processo criativo aberto, cujo planejamento previa ações teóricas e práticas, bem como espaços propositivos com atividades a serem construídas junto ao elenco.



Tomando a história da dança no ocidente como base de nossa pesquisa, escolhemos 3 movimentos de vanguarda, sendo eles: balé clássico, dança moderna e dança contemporânea. E sobre cada um destes movimentos, elegemos referências diretas, sendo elas: o movimento do balé romântico, e os bailarinos e coreógrafos Isadora Duncan, Alwin Nicolais, Trisha Brown, Pina Bausch e Alexander Ekman.


Estudamos a história desses movimentos de maneira geral, de modo a pensar em como o corpo feminino estava inserido naqueles contextos, bem como nos debruçamos sobre a história dessas referências escolhidas, sobre como elas pensavam/pensam e como elas produziram/produzem dentro do campo da dança. Para dialogar com todos esses estudos, criamos exercícios de reflexão e produção escrita e de movimento, como por exemplo responder questões: “O que você diria acerca do corpo feminino para o balé romântico? O que o balé romântico diria para você nesse momento?”. A partir disto, nós da equipe de direção propúnhamos diferentes processos criativos para cada cena pensada para o espetáculo, por vezes para todo o elenco participar, por vezes para uma parte do elenco previamente selecionada. Em todos estes processos, havia uma linha condutora que girava em torno da reflexão sobre os seguintes itens: repertório técnico, risco, beleza e expressividade - elementos esses que nos são caros quando pensamos a produção artística nos campos da dança e das artes circenses, para muito além da virtuose característica destes campos artísticos.


Em DAS AMARRAS DELA, tecido, solo, parede, teto são produzidos pelo ar movido pelos corpos que atravessam a paisagem cênica. Uma, duas ou três pessoas no ar mostram que o repertório conhecido é refeito, é pensado, é traduzido com outras amarras, assim se dá a criação. O movimento é potente para isso, a busca pelo trânsito no espaço cênico também, mas não posso esquecer de dizer que a disponibilidade dos corpos e a preparação dos mesmos é extremamente fundamental e necessária para tudo isso ocorrer.” Wagner Ferraz⁵

Sobre a concepção do espetáculo “Das amarras dela”, cabe destacar que prevíamos a exploração técnica do tecido enquanto equipamento aéreo, nos seus diversos modos de instalação, que implicam diferentes usos. Citamos aqui: tecido marinho, tecido em gota, tecido vertical, gota dupla com giro. Importante salientar que nas aulas de Dança Aérea do Circo Híbrido utilizamos o tecido unicamente em sua instalação vertical, e portanto, para o desenvolvimento deste projeto, o elenco se dispôs a desafiar e investigar a dança aérea em suas múltiplas possibilidades.


Uma vez colocado nosso desejo de explorar os tecidos em suas mais variadas possibilidades, estabelecemos também que queríamos todos os equipamentos em cena, preenchendo o espaço cênico em sua totalidade. E isso se daria de modo descentralizado, ou seja, não queríamos o corpo em cena pendurado, no centro do palco. Ainda sobre as relações do espaço cênico e os equipamentos aéreos, algo muito presente no universo circense são as contrarregragens entre uma cena e outra. Sobre isso, desejávamos que esses momentos não representassem rupturas, mas diferentemente, que compusessem a cenografia progressivamente, acumulando elementos cênicos no palco, e ao final do espetáculo, o pública contempla uma cenografia composta por todos os equipamentos aéreos e pelos bailarinos. Por fim, e ainda sobre a ideia de descentralizar, ressaltamos que ao conceber as cenas, não partimos do princípio que o foco estaria no corpo em movimento, mas diferentemente, na relação poética que este corpo em movimento estabelece com os aparelhos aéreos.


Em paralelo aos processos criativos com o elenco, iniciamos os processos criativos com cenografia, iluminação, figurinos e arte gráfica. Ao pensar na cenografia para além da ocupação cênica descrita no parágrafo anterior, propomos ao cenógrafo pensar a relação do corpo feminino na dança com um elemento bastante presente, o espelho. A partir daí, nasceu uma cenografia, com superfícies reflexivas, em diferentes dimensões, vertical e horizontal, às quais influenciaram diretamente no projeto de iluminação. Sobre os figurinos, cabe ressaltar que a dança aérea sempre se depara com uma grande dificuldade técnica em torno da vestimenta, o que influencia na escolha dos tecidos utilizados, no corte das roupas e no quanto ela irá cobrir o corpo do bailarino, pois por vezes uma escolha inadequada pode provocar acidentes e trazer risco ao artista. Diante de todas estas demandas, nossa preocupação era conseguir criar um projeto de figurinos que não apenas desse conta de todas essas demandas, mas que também estivesse relacionado com cada referência escolhida para cada cena.


“Das amarras dela” em breves linhas

Em cena, coreografias inspiradas em três grandes movimentos de vanguarda - o balé romântico, a dança moderna e a dança contemporânea - nas quais constroem-se retratos do corpo feminino em cada contexto. Faz pensar no modo que essas diferentes vanguardas tocaram o corpo feminino, submetendo-o não apenas a padrões estéticos e de movimento, mas também de comportamento. Assim, a dança inserida no campo das artes não constitui-se necessariamente numa via de libertação para o corpo feminino. Por vezes, é apenas mais um âmbito do social que deixa transparecer muitos dos padrões que cultural e historicamente se tornaram amarras que a dança pode imprimir nos corpos femininos.



Desdobramentos

A criação deste espetáculo iniciou em 2017, e ele teve sua estreia em 2018, em uma temporada de 3 dias, durante o final de semana, no Teatro Renascença, via edital público de ocupação dos teatros municipais. Com esta temporada fomos indicados no Prêmio Açorianos de Dança 2018 em 5 categorias - Espetáculo do Ano, Direção (Tainá Borges e Lara Rocho), Cenografia (Luís Cocolichio), Iluminação (Mirco Zanini) e Produção, e conquistamos o Prêmio Açorianos de Dança 2018 de Melhor Cenografia. A temporada teve sala cheia em todos os dias de apresentação e um excelente retorno do público.


No palco, o feminino traduzido em cada gesto, desde o balançar dos tecidos, nas luzes que chicoteavam os espelhos, pendurados corpos que bailam, o vermelho que excita, o equilíbrio constante de tentar controlar e se descontrolar, o se ver em pele e defeito. Vi sororidade, vi um transbordar de sentidos! Obrigada @circohibrido por insistir e resistir, em viver da arte e em trabalhar com a arte, por esquentar o peito e silenciar os pensamentos aflitos por uma hora e quinze.Christiane Engelmann Baladão⁶

Um ano depois, voltamos a concorrer no mesmo edital para uma segunda temporada, a qual não fomos selecionados, o que nos impulsionou a buscar outras opções para colocar este trabalho em cena novamente, em meio às celebrações do aniversário de 15 anos do nosso grupo. Assim, conseguimos uma oportunidade incrível: uma temporada no Teatro São Pedro, em 2019, com duas noites em um final de semana, com a sala cheia nas duas noites. Com esta temporada, fomos indicados para o 10º Prêmio Olhares da Cena 2019, nas categorias de melhor Design Gráfico (Mônica Kern) e Cenário (Luís Cocolichio) de espetáculos de Dança, na qual conquistamos o Prêmio de Melhor Designer Gráfico.


"No palco os bailarinos nos entregam mais do que um corpo físico, pois através das suas amarradas coreografias nos apresentam o corpo simbólico, o corpo mental, o corpo político, o corpo histórico; e isso me leva a considerar o corpo que realiza atividade circense como um “corpo em estado de presença” o qual desenvolve uma prática não identificável com as outras artes, apesar de ter relação com todas: com teatro por toda a concepção do espetáculo e da cena, com a dança pelo caráter corporal e o movimento que permeia o espetáculo circense, com a música pelo ritmo que a constitui a base de todas as técnicas circenses, com as artes plásticas pelo conteúdo e pela construção de imagens e emoções." Diego Ferreira⁷

Neste mesmo ano de 2019, fomos selecionados para o 26º Festival Porto Alegre em Cena, sendo um dos trabalhos indicados ao 14º Prêmio Braskem em Cena. Essa terceira temporada do espetáculo “Das amarras dela” aconteceu dentro do Festival, em duas noites de sala cheia, em um final de semana, no Teatro Renascença.



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Notas:

  1. Artista, produtora, professora e gestora circense de Porto Alegre, RS, do grupo Circo Híbrido.

  2. Artista, professora e Historiadora de Porto Alegre, RS, do grupo Circo Híbrido, que concebeu este trabalho junto comigo, e ajudou na produção deste relato.

  3. Grupo circense de Porto Alegre, RS, fundado em 2004. Mais informações: https://www.circohibrido.com.br/

  4. Neste ano de 2020, em função da Pandemia, o NUDA está com suas atividades presenciais suspensas desde março, porém mobilizado virtualmente no intuito de realizar novos projetos.

  5. Reflexão de Wagner Ferraz sobre trabalhos do Circo Híbrido, em 2019. Texto na íntegra: https://dancedancebr.weebly.com/textos

  6. Depoimento da bailarina e ex aluna da nossa escola Christiane Engelmann Baladão, após assistir a temporada de estreia. Texto na íntegra: https://www.instagram.com/p/BjTobWgArxA/?igshid=gz8pqapiyxab

  7. Crítica de Diego Ferreira, do Prêmio Olhares de Cena, após assistir nossa segunda temporada no Teatro São Pedro. Texto na íntegra no site do Prêmio Olhares de Cena: https://olharesdacena.blogspot.com/2019/07/das-amarras-dela-rs.html?fbclid=IwAR0aV29E_iskrUg9bwrEpXVaYHwmrI_cvNtfOa7cYhbAWwxizdAYOOUWo5o

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Fotos e Vídeo: Sal Fotografia

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Este projeto foi selecionado no Edital Emergencial de Auxílio à Cultura da Prefeitura Municipal de Porto Alegre





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